terça-feira, abril 11, 2006

o orfeu de saint german de prés

o orfeu é aquele tipo que tocava a lira e cantava tão lindo que amansava as feras, acalmava a corrente dos rios e fazia as pedras e as arvores dansar (com s e não com um c sentado). o orfeu era todo ele poesia.
a historieta mais famosa do orfeu é de quando ele desce aos infernos para ir buscar a sua corpse bride euridice. consta que a dita andava a fugir de um tipo qualquer e foi mortalmente mordida por uma cobra. auch.
o orfeu muito desgostoso com a morte da bonitona, começa a cantarolar as coisas mais tristes alguma vez ouvidas. uma lamuria tão sofrida que subiu aos ceus e pôs ninfas, deuses tudo tudo choroso. eles juntaram-se (que é o que os deuses faziam all the time, juntarem-se no café do olimpo pra beber umas birras quiméricas, comer uns divinos tremoços e falar da vida dos outros) e compadeceram-se. decidiram calar o orfeu oferecendo-lhe uma viagem aos infernos para resgatar a sua amada.
o orfeu lá foi descendo para os infernos, a cantar, amaciando tudo à sua passagem qual soflan, e quando chegou lá a baixo já o hades estava completamente bananas e deixou a euridice subir com ele para o mundo dos vivos. com uma condição. o orfeu devia ir em primeiro lugar e nunca olhar para trás para ver se euridice o seguia. caso olhasse puff, a dita ficava nos infernos for ever n' ever n' ever.
é claro que o orfeu não aguentou, fez pikaboo e a euridice desvaneceu-se-lhe da vista. reza a lenda que depois disso ele nunca mais quis nada com gajas e que se foi refugiar no amor dos rapazinhos. "love the young in the flower of their youth". eu acho bem. enfim. depois de dar o enquadramento vou ao orfeu do cocteau, que vi ontem na cineteca.

o orfeu do cocteau também é um poeta. Um poeta francês dos anos 40.

é alto bonitão, no auge da sua carreira, aclamado pelo público e pela critica. um gajo vestido de creme (espero eu, afinal o filme é preto e branco e o gajo até podia estar vestido de amarelo). Enfim, um tipo elegante que ia cruzar a perna, fumar e beber espiritos ao cafee des poetes, em saint-germain-de-prés, paris-frança.

o orfeu da mitologia ficou famoso por ter arriscado a vida pela sua amada. a euridice deste dandy é uma tipa para o gordinho, que está em casa e não prima pela inteligência. tanto não prima que o orfeu não se lhe arrima muito.


o cocteau estava obcecado pelo orfeu-orfeu (cena alter-ego - o cocteau era poeta - e músico e manager de boxeurs e assim). A problemática aqui não é o amor dos poetas pelo seu objecto amado, é a sua obsessão pela morte. por isso aqui o poeta não é o meio, ou a viagem, é o fim, e a sua própria morte.

o orfeu do filme, como bom poeta, é obcecado pela própria morte. tão obcecado que se apaixona por ela - and it's no wonder, no filme a morte é uma BCBG vestida de channel que o vai ver dormir à noite. a morte anda de rolls royce, escorted por dois motoqueiros leatherette. é stylish.


é um filme fantasioso. podia ser walt disney não fosse tão sombrio.

o orfeu do filme apaixona-se na primeira vez que a vislumbra. e faz tudo para a voltar a ver. fica dias fechado no carro a ouvir mensagens enigmáticas, que se advinham tétricas, emitidas por uma rádio que só tem recepção ali. wicked.

tão fascinado que nem dá pela morte da euridice. fica ligeiramente chatiadinho com a cena e para bem da construção da narrativa lá tem que ir buscá-la aos infernos.

a passagem para o outro mundo dá-se através dos espelhos, que se tornam liquidos e assim transponíveis.

“I am letting you into the secret of all secrets, mirrors are gates through which death comes and goes. Moreover if you see your whole life in a mirror you will see death at work as you see bees behind the glass in a hive”

os mortais podem atravessá-los se usarem umas luvas de borracha (crianças não experimentem isto em casa).

o inferno do cocteau são edificios franceses bombardiados, ainda em ruína da segunda guerra mundial. o que o orfeu encontra lá em baixo é um comité de averiguação de irregularidades. 3 gajos de fato sentados atrás de uma secretária. uma coisa policial.

lá o deixam levar a euridice, com a mesma condição da lenda. não olhe para ela, orfeu. a morte também é julgada (tinha levado a euridice só por ciuminho). não pode andar assim a levar pessoas só porque se apaixona por um poeta.

a morte é condenada. e faz todo o sentido. é preciso sacrificar a morte de um poeta, para que ele possa ser imortal.

não sei se isto fechou bem. mas não me apetece escrever mais.
ah, a euridice evapora-se. porque o orfeu olha para ela. não por vontade, mas por acaso, no reflexo do retrovisor do rolls royce da morte.

5 comentários:

Anónimo disse...

gigante!

L.

pat disse...

eu sei, alonguei-me um bocadinho. é para lerem aos bocadinhos. tardes destas com pouco que fazer vão rareando.

Anónimo disse...

não era esse gigante que me referia.
mas sim, também se aplica. ;)

Paula disse...

estaremos a redireccionar a nossa carreira menina catarina? somos críticas de cinema agora? vamos escrever para o Y?

mas sem crítica à tua crítica, gostei imenso. olha se eu fosse jurí de um concurso de jovens cantores qualquer diria: continua, estás no bom caminho. Como não sou e até sou um bocadinho mais bem educada vou-te dizer: continue, está no bom caminho.

pat disse...

paula, a minha vida tem sido o cinema. a não ser que queiras que eu faça um blog sobre luis ou sobre trabalho. que te parece?